quinta-feira, março 08, 2012

Invocação à mulher única

Tu, pássaro – mulher de leite! Tu que carregas as lívidas glândulas do amor acima do sexo infinito
Tu, que perpétuas o desespero humano – alma desolada da noite sobre o frio das águas – tu
Tédio escuro, mal da vida – fonte! Jamais… jamais… (que o poema receba as minhas lágrimas!...)
Dei-te um mistério: um ídolo, uma catedral, uma prece são menos reais que três partes sangrentas do meu coração em martírio
E hoje meu corpo nu estilhaça os espelhos e o mal está em mim e a minha carne é aguda
E eu trago crucificadas mil mulheres cuja santidade dependeria apenas de um gesto teu sobre o espaço em harmonia.
Pobre eu! Sinto-me tão tu mesma, meu belo cisme, minha bela graça, fêmea
Feita de diamantes e de cuja postura lembra um templo adormecido numa velha madrugada de lua…
A minha ascendência de heróis: assassinos, ladrões, estupradores, onanistas – negações do bem: o Antigo Testamento! – a minha descendência
De poetas: puros, selvagens, líricos, inocentes: o Novo Testamento – afirmações do bem: dúvida
(Dúvida mais fácil que a fé, mais transigente que a esperança, mais oportuna que a caridade
Dívida, madrasta de génio) – tudo, tudo se esboroa ante a visão do teu ventre púbere, alma do Pai, coração do filho, carne do Santo Espírito, amém!
Tu, criança! Cujo olhar faz crescer os brotos dos sulcos da terra – perpetuação do êxtase
Criatura, mais que nenhuma outra, porque nasceste fecundada pelos astros – mulher! Tu que deitas o teu sangue
Quando os lobos uivam e as sereias desacordadas se amontoam pelas prias – mulher!
Mulher que eu amo. Criança que eu amo, ser ignorado, essência perdida num ar de inverno…
Não me deixes morrer!... eu, homem – fruto da terra – eu, homem – fruto do pensamento – eu, homem – frutoo da carne
Eu que carrego o peso da tara e me rejubilo, eu que carrego os sinos do sémen e que se rejubilam à carne
Eu que sou um grito perdido no primeiro vazio à procura da Deus que é o vazio ele mesmo!
Não me deixes partir… - as viagens remontam à vida!... e porque eu partiria se és a vida, se há em ti a viagem muito pura
A viagem do amor que não volta, a que me faz sonhar do mais fundo da minha poesia
Com uma grande extensão de corpo e alma – uma montanha imensa e desdobrada – porque eu iria caminhando
Até ao âmago e iria e beberia da fonte mais doce e me enlanguesceria e dormiria eternamente como uma múmia egípcia
No invólucro da Natureza que és tu mesma, coberto da tua pele que é a minha própria – oh mulher, espécie adorável da poesia eterna!

por Vinicius de Moraes (in Antologia Poética)

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